quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Onde estão as nossas Rutes ?



Quem lida com as questões envolvendo gênero sabe que em casos de violência doméstica, por exemplo, quando a mulher agredida verbaliza ou toma uma atitude pública, há muitos comentários femininos que menosprezam a atitude da mulher ou justificam a agressão sofrida com frases sexistas do tipo: "Ah, ela deve gostar! ", "Alguma coisa ela fez pra merecer isso, etc" .
Em cada faceta da experiência feminina no mundo, como o papel de cidadã, mãe, filha, esposa, namorada, profissional, religiosa, entre outras maneiras de estar, há momentos em que será preciso transgredir alguma ordem social vigente, pois a sociedade ocidental, em particular, foi forjada na experiência cultural, política e religiosa do patriarcalismo cuja mensagem mais audível é a afirmação de que os homens são superiores em tudo e, por isso, detém a supremacia sobre tudo: lugares, títulos, honras, dinheiro, desejos, vocações, ideias e corpos.

Também é notório que quando nosso olhar fica mais sensível às questões de gênero, é espantoso perceber que muitas mulheres "concordam" com essa visão de mundo e das relações, reproduzindo-as na criação de meninos e meninas ou deixando-a transparecer na ausência de identificação com outras mulheres em situações de violência ou exclusão, real ou simbólica.
Intuo que esse comportamento talvez seja resultado de uma atitude cotidiana de negação da existência da opressão feminina a qual ela mesma sofre. Quantas senhoras casadas não precisaram blindar suas emoções, silenciar a tal ponto de não conseguir mais nomear o vivido? Daí a dificuldade, inclusive, de reconhecer a existência da desigualdade ou reportá-la ao desejo divino do "sempre foi assim".
Não existe nada mais doloroso para nós mulheres que pensamos a desigualdade ou a sofremos com consciência dela, a falta de solidariedade de outras mulheres para conosco. 

Não endosso o discurso de vitimização, mas reconheço que existem vítimas.

A história de Noemi é bastante conhecida e tremendamente atual na descrição de uma tragédia familiar. Fome, seca, doença, questões com as quais Noemi e seu povo tinham que lidar. Na busca por melhores condições de vida, migrou. Lá ela viu, um a um, os homens de sua vida, esposo e filhos, morrerem. Pobre, mulher, velha, sem um homem que a protegesse e sustentasse, a tragédia seria a sua "natural" sina. Por solidariedade, ela desobriga suas noras de seguí-la. Ela sabe muito bem o que a espera. Por que selar o destino de suas noras?

Rute, embora jovem, sabia exatamente como era o mundo em que vivia. Os únicos elementos de diferenciação na existência dela e de sua sogra, eram a religião e a etnia. Rute tomou uma decisão difícil, arriscada, corajosa, fraterna. Rute devolveu a solidariedade de Noemi para com ela, colocando-se no mesmo caminho, pois, para ela, não haveria outra forma de continuar em frente se não ao lado de Noemi. Não sei se nessa história antiga, parte integrante de uma narrativa vétero testamentária tribal, Rute poderia ter consciência de que Noemi teria mais chance ao seu lado, justamente por ela ser jovem. Não importa. O importante é que, de fato, somente na solidariedade das mulheres com elas mesmas, em um grande esforço de sororidade, é que a vida das mulheres poderá deixar de protagonizar coletivamente destinos trágicos.
Esta solidariedade de Rute precisa ser revisitada.  Já há muitos censores e opressores sobre nós para que,  entre nós mesmas,  caminhemos resistindo sozinhas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você pode comentar, desde que seja educado (a).

diálogo no museu da justiça